Sound Systems Jamaicanas
As Sound Systems jamaicanas tradicionais (festas de rua
populares em Kingston criadas na década de 50 nas quais eram tocados sucessos do
R&B norte-americano) são as
precursoras da essência do que nós conhecemos como Hip Hop e, posteriormente, do Remix
como técnica de intervenção musical.
A Jamaica é conhecida há décadas por exportar ótima música e
excelentes instrumentistas, como por exemplo, o Mento (gênero folclórico semelhante ao Calypso de Trinidad) que até os dias de hoje é gravado e lançado
por intérpretes tradicionalistas como os Jolly
Boys.
Em meados da década de 40 o Jazz chega à ilha através de discos e transmissões de rádio. Inúmeras
bandas se formam, muitas delas formadas por músicos que passaram pela Alpha Boys School, e com a consolidação
da ilha como pólo turístico internacional, gigs
de jazz passam a ser apresentadas em grandes hotéis direcionadas para turistas
e a população do uptown, logo ter uma
banda tocando em sua festa se torna algo inacessível para a grande massa.
Nos anos 50 a música popular americana começa a se
fragmentar, o Jazz cede espaço ao Bebop e o R&B, antes chamada de música de raça, ganha força. O tempo do Jazz orquestrado se esvai ao passo que a
música popular cresce mais forte, mais jovem. A Jamaica em si estava mudando, a
população criava um êxodo do rural em busca de melhores condições de vida, e
tinham como diversão em seus finais de semana ir à festas a céu aberto,
primariamente chamadas de “festas de gramado”, espalhadas por toda cidade onde
essencialmente ouviriam sucessos da música popular norte-americana através de DJs, seu toca discos e muitas caixas de
som. Além de divertir o público por uma entrada de baixo custo, essas festas
eram como uma rádio comunitária da grande massa que “informava” os sucessos
recém-lançados. A situação era difícil na época, não havendo condições, na
maioria das vezes, nem mesmo para a compra de um rádio. As playlists das festas se resumiam a R&B cru, rápido e com batidas pesadas, geralmente os donos de
sound systems viajavam aos Estados Unidos para comprar novos discos ou tinham
um agente que fazia esse serviço, era uma constante competição para sempre ter
as novidades do mercado e um hit era
facilmente reproduzido 15 ou 20 vezes durante as festas.
Na metade da década haviam duas sound systems que dominavam
o público de Kingston.
Duke Reid com a Trojan: nascido Arthur Reid em 1915, amante do R&B norte-americano, dono de uma loja de bebidas chamada “Treasure Isle” e de um programa de rádio chamado “Treasure Isle Time” no qual tocava somente R&B, Duke Reid também foi dono de uma popular sound system. Mais tarde também viria a ser dono de um dos mais importantes selo/estúdios da ilha chamado “Treasure Isle Studio”.
Duke Reid com a Trojan: nascido Arthur Reid em 1915, amante do R&B norte-americano, dono de uma loja de bebidas chamada “Treasure Isle” e de um programa de rádio chamado “Treasure Isle Time” no qual tocava somente R&B, Duke Reid também foi dono de uma popular sound system. Mais tarde também viria a ser dono de um dos mais importantes selo/estúdios da ilha chamado “Treasure Isle Studio”.
E Clement Dodd com a Sir Coxsone Downbeat: nascido Clement Seymour Dodd em 1932, dono de
uma também popular sound system e de outras até que, em certo momento, passou a
contratar “braços direitos” para dirigir as festas nas quais estaria ausente,
uma dessas festas, por exemplo, era dirigida por Lee “Scratch” Perry, que viria
a ser um dos mais importantes produtores jamaicanos da história. Coxsone também
viria a ser dono de um dos mais importantes selo/estúdios de gravação chamado
“Studio One”.
A competição, envolvendo a busca de novos sucessos do
mercado norte-americano a fim de assegurar o público de suas próprias festas,
entre essas duas grandes sound systems era intensa e durou até a década
seguinte. A situação era tal que os DJs
raspavam os labels do vinil para que
algum “espião” de outra festa não soubesse o que foi tocado. E esse foi um dos
grandes catalisadores do crescimento da indústria musical na Jamaica, já que as
sound systems não tinham outra escolha porque a ilha não possuía estúdios de
gravação e mesmo depois da abertura dos primeiros estúdios, ainda era dada
ênfase aos materiais licenciados norte-americanos.
No final da década de 50 são lançados os primeiros discos de
artistas locais, praticamente cópias dos sucessos norte-americanos, mas pouco
importava já que eram novas músicas que poderiam ser tocadas nas sound systems.
Percebendo a possibilidade de gravar discos a serem tocados em suas próprias
festas Reid e Dodd abrem seus selos (respectivamente Treasure Isle e Studio
One) e uma vez que a indústria fonográfica, ainda que rudimentar, estava
instalada na ilha, os jamaicanos não precisavam mais enviar a matriz pra os
Estados Unidos para prensagem. Daquele ponto era inevitável que um gênero
popular jamaicano fosse surgir.
“Nós estávamos tentando imitar, mas quando o fizemos, não
ficou real” – Derrick Morgan. Voltando de uma gravação com Reid, Derrick Morgan
conheceu Prince Buster (Cecil Campbell, cantor e produtor) que pediu uma chance
e acabou gravando 13 hits, na verdade era para Buster ceder a Reid metade do
dinheiro ganho com a gravação e ele terminou por retribuir com uma música, a
que ele julgava mais fraca. Esse foi um dos momentos que transforma a história,
ao longo da produção algo novo surge, uma mistura do Mento tradicional com o R&B.
E assim surge o Ska. Ou pelo menos
uma de suas versões, ninguém sabe ao certo nem quando o gênero surgiu, alguns
dizem ter sido no início de 60, outros em 59, 56 até 51, mas os críticos em
peso concordam que o pai do Ska foi
Prince Buster.
Músicas como “They got to Go” e “Shake a Leg”
aprofundaram e estabilizaram o gênero, com ênfase nos contratempos
síncopados das guitarras. Fora que o Ska se encaixou perfeitamente no clima
da época, com a ilha conquistando sua independência e o crescente sentimento
nacionalista, a música feita pela classe operária era a verdadeira música da
grande massa e realmente sintetizava os guetos de Kingston.
Os discos na época passam a ser prensados quase que
exclusivamente para serem tocados nas festas, os chamados acetatos (ou Dubplates) que eram de fácil
deterioração, já que em pouco tempo seria lançado algo novo e assim também
poderiam analisar a aceitação do público.
Junto com o desenvolvimento do Ska veio a popularização do DJ,
figura muito importante na cultura das sound systems, que basicamente era um
dos focos principais das festas. Sua função além de obviamente selecionar,
tocar e trocar os discos, era a de entreter o público, ler memorandos e
posteriormente executar o que os jamaicanos chamam de toasting (no resto do planeta essa prática ficou conhecida como rapping). O ato do toasting é bastante
amplo, o DJ poderia, por exemplo,
contar alguma piada em um intervalo de música, ou também agitar o público com
frases de efeito como “Yeah! Dig for daddy, dig for mommy!” ou poderia repetir
continuamente a palavra Ska ao longo
da música, prática que foi evoluindo ao longo do tempo.
Grandes nomes como Sir Lord Comic, King Stitt, Count
Matchuki e U Roy começaram a rimar palavras de maneira ritmada por cima de hits nas festas e com uma notável
habilidade, poderiam rimar durante várias músicas, muitas vezes também
reforçando sua mensagem principal. Logo se criou uma necessidade de ter músicas
instrumentais e versões instrumentais de músicas já conhecidas para esse tipo
de prática que acabou se tornando bastante popular.
No final dos anos 60, produtores musicais, visando atender a
demanda dos DJs e até mesmo renovar a
cena de música popular, começaram a fazer intervenções técnicas nas músicas.
Como King Tubby (nascido Osbourne Ruddock em 1941), coroado como o rei do subgênero
musical que viria a ser chamado de Dub
a partir da década de 70. Deve-se a existência do Dub a produtores musicais e engenheiros eletrônicos já que foram os
próprios que passaram a separar as frequências das músicas, assim como a voz do
riddim (gíria jamaicana para a trilha
instrumental e percussiva da música), desenvolver seus próprios equipamentos e
assim gerando novas possibilidades e timbres, como o próprio King Tubby que uma
vez trouxe dos Estados Unidos uma unidade de reverb Fischer, e assim que o aparelho quebrou, Tubby que além de excelente
produtor era um engenheiro treinado consertou seu equipamento, mas da sua
maneira e não da maneira do fabricante, a deixando com uma sonoridade mais interessante.
Infelizmente King Tubby foi assassinado em 1989 no auge da guerra civil
política na Jamaica.
Outro produtor muito importante para o desenvolvimento
do conceito e também responsável pela popularização do Dub internacionalmente é Lee
“Scratch” Perry (nascido Rainford Hugh Perry em 1936). Músico e exímio produtor
musical, Lee “Scratch” Perry começou sua carreira como DJ tocando nas sound systems de Clement Dodd para mais tarde, após ter
diversos conflitos com Dodd e outros donos de selos e vender 60.000 cópias com
um hit, fundar o “The Black Ark”,
estúdio que o fez ganhar fama internacional gravando ícones como Bob Marley
& The Wailers, The Congos e Max Romeo. Suas produções eram diferenciadas,
enérgicas e, segundo Perry, o segredo do “The Black Ark” era água! Perry diz
que em certo momento de sua vida percebeu que a água é a única substância da
qual um homem não consegue sobreviver sem, logo, construiu a sala de gravação
em cima de água. Até concluir que o abuso de álcool, nicotina e ganja estava
destruindo sua “criança interior” e que todo o maravilhoso trabalho feito no “The
Black Ark” tinha sido desenvolvido em cima do abuso dessas substâncias, decidiu
fechar o estúdio e recomeçar do zero sem a utilização de quaisquer substâncias
e, felizmente, está na ativa até os dias de hoje.
A imigração em massa dos jamaicanos para a Inglaterra
levou a cultura das sound systems, do Ska
e do Dub, dos guetos de Kingston para
os guetos de Londres, dando assim nascimento aos Rude Boys, personificação dos infratores juvenis da classe pobre dos
guetos ingleses, posteriormente aos Skinheads e em meados dos anos 80 se
mostra alicerce para o todo o desenvolvimento da cultura de Raves e culturas posteriores.
Mas a imigração para os Estados Unidos realmente criou
algo único. Por volta de 1967 DJ Kool Herc (nascido Clive Campbell em 1955),
jamaicano, exposto a toda a cultura das sound systems, se muda para o bairro do
Bronx em Nova Iorque, que sofria uma
grande desvalorização após a construção de uma autoestrada, criando quase que
imediatamente uma violenta cultura de gangues juvenis, já que o bairro se
tornou uma zona praticamente abandonada. Na época da escola, devido ao seu
tamanho e habilidade no basquete Clive Campbell ganha o apelido de “Hercules” e
após se juntar a uma crew de grafitti,
adota o nome de “Kool Herc”. Basicamente as festas de Herc consistiam em dois
toca-discos e um PA, por onde ele disparava hits
de James Brown, The Jimmy Castor Bunch e The M.G.’s para uma platéia de certa
forma pré-estabelecida, já que os donos de clubes da região ficavam receosos
com a presença de gangues, os DJs da
época estavam tocando algo mais no clima da Disco
Music e a rádios faziam distinção demográfica com a população do Bronx.
Foram nestas primeiras festas que Kool Herc
desenvolveu o estilo que posteriormente seria chamado de Hip Hop. Ele costumava repetir partes de uma música que eram puramente
instrumentais e com uma batida pesada e já que estas partes eram as que os
dançarinos (mais tarde chamados de B-boys
e B-girls) curtiam mais, Herc tirava
o volume e mudava para o outro pick-up, prolongando o som e assim que o segundo
LP terminava ele voltava com o
primeiro, transformando uma pequena parte em 5 minutos de loop.
Estas e muitas outras técnicas desenvolvidas por Herc
foram posteriormente utilizadas por DJs
consagrados como Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa e tantos outros até os
dias de hoje. Mas somente um jamaicano nascido na cultura das “festas de
gramado”, exposto à violência dos guetos do Bronx
e à energia de James Brown poderia ser coroado como o pai do Hip Hop.
Ângelo Colasanti
Arthur Sabbadin
Arthur Sabbadin
Gabriel Reis
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